Na última sexta-feira (01/07/2022), o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por maioria, a existência de repercussão geral do Tema 1.153, em que se discute a legitimidade passiva do credor fiduciário para figurar em execução fiscal de cobrança do IPVA incidente sobre veículo objeto de alienação fiduciária. A análise foi realizada pelo Plenário Virtual.

No contrato de alienação fiduciária, a aquisição do bem é financiada pelo credor fiduciário (geralmente, uma instituição bancária), o qual é proprietário do bem enquanto o comprador não quitar o seu financiamento. Desse modo, o devedor fiduciário possui apenas a posse direta da coisa, em razão do ônus decorrente da garantia da dívida que recai sobre o bem. Assim, caso o devedor não efetue o pagamento do financiamento no prazo estipulado, o credor pode, inclusive, requerer judicialmente a busca e apreensão do bem alienado.

O recurso representativo da controvérsia, RE 1.355.870/MG, envolve Execução Fiscal ajuizada pelo Estado de Minas Gerais contra o Banco Pan S.A., credor fiduciário, e o devedor fiduciante, solidariamente, por débitos relativos ao IPVA incidente sobre o veículo alienado.

Na primeira instância, o processo foi extinto em relação ao banco, em virtude de o magistrado não o considerar parte legítima para figurar como corresponsável tributário. No entanto, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), ao julgar a Apelação interposta pelo Estado, reformou a sentença sob o fundamento de que a instituição financeira credora fiduciária ou arrendadora seria responsável pelo pagamento do IPVA por ser proprietária dos veículos dados em garantia de financiamento, conforme previsto nos arts. 4º e 5º, I e II da Lei nº 14.937/2003 do Estado de Minas Gerais.

Em face dessa decisão, o banco interpôs referido recurso perante o STF, alegando que a lei mineira viola o conceito de propriedade, estabelecido no art. 1.228 do Código Civil, o qual deveria ser observado por força do art. 110 do Código Tributário Nacional. Além disso, a Recorrente alegou que a legislação mineira extrapola a própria hipótese de incidência do IPVA, prevista no art. 155, III, da Constituição da República (CRFB/1988), padecendo de evidente inconstitucionalidade material.

Diante disso, a instituição financeira argumentou que, embora os Estados possuam competência constitucional para editar normas gerais quanto aos tributos de sua competência, nos termos do art. 146 da CRFB/1988, não poderiam expandir as hipóteses de incidências previstas constitucionalmente. Ademais, sustentou que o credor fiduciário passa a ser responsável pelo pagamento de tributos apenas a partir da transmissão de propriedade plena e da consequente imissão na posse, com fundamento nos arts. 1.228, 1.364, 1.365 e 1.368-B do Código Civil.

Em relação à existência de repercussão geral, a recorrente defendeu ser evidente a relevância social, econômica e jurídica do tema, que ultrapassam os interesses subjetivos da causa. Para tanto, sustentou que a alienação fiduciária tem sido a principal modalidade de garantia para o financiamento da aquisição de veículos, além de ser uma importante modalidade de garantia a permitir que o cidadão acesse taxas de financiamento menores na modalidade de Crédito Direto ao Consumidor (CDC).

Por outro lado, o Estado de Minas Gerais requereu o não conhecimento do recurso extraordinário por ausência de repercussão geral do tema, sob o argumento de que a Súmula nº 280 do STF orienta que não cabe recurso extraordinário por ofensa a direito local. Além disso, alegou violação da Súmula nº 282 do STF, que estabelece ser inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada. Por fim, sustentou que eventual ofensa à Constituição se daria de forma reflexa.

No Plenário Virtual, o Ministro Presidente Luiz Fux, relator do caso, manifestou-se no sentido de que a matéria possui densidade constitucional suficiente para o reconhecimento da existência de repercussão geral. Isso porque caberia ao STF definir, à luz dos arts. 146, III, “a”, e 155, III, da CRFB/1988, se os Estados e o Distrito Federal podem, no âmbito de sua competência tributária, imputar ao credor fiduciário a responsabilidade tributária para o pagamento do IPVA, ante a ausência de legislação nacional sobre o tema.

Outrossim, o relator concordou com a recorrente, ao reconhecer que, não apenas a relevância social e econômica do modelo de alienação fiduciária, mas também a relevância jurídica, tendo em vista as decisões proferidas no RE 727.851/MG, submetido ao rito da Repercussão Geral, e na ADI 4.612/SC. Destacou, ainda, que a temática revela potencial impacto em outros casos, pois há diversos recursos sobre essa específica questão jurídica.

O entendimento do relator foi seguido pela maioria dos ministros, ficando vencidos os Ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. O mérito da controvérsia será submetido a julgamento no Plenário físico, mas ainda não foi pautado.

Nosso sócio fundador, Paulo Coimbra, destaca a importância de a Suprema Corte decidir, em repercussão geral, a (in)constitucionalidade da eleição do credor fiduciário como sujeito passivo do IPVA: “O credor fiduciário não é proprietário para fins de tributação pelo IPVA e sequer pode ser eleito como responsável tributário, uma vez que o credor detém tão somente a propriedade resolúvel e a posse indireta sobre bem, nos termos dos arts. 1.361 e 1.368-B, do CC/2002. Nesse sentido, a escolha do responsável tributário não pode ser feita ao alvedrio do legislador, de forma a extrapolar a regra matriz de incidência do IPVA, prevista constitucionalmente, como fez o legislador mineiro.”

“A decisão do TJMG questionada perante a Suprema Corte é contraditória ao acórdão proferido pelo próprio Tribunal, ao julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas no Processo 1.0024.14.014689-5/003, no início deste ano. Na oportunidade, foi definido que o credor fiduciário não pode ser responsabilizado pelo pagamento dos encargos derivados de apreensão do veículo devido a infrações administrativas de trânsito, conforme noticiamos em nosso site. Um dos fundamentos da decisão foi justamente o fato de que o credor fiduciário detém somente a propriedade resolúvel e a posse indireta sobre o veículo,” acrescenta Paulo.

Paulo conclui: “Esperamos que a Suprema Corte reconheça a patente inconstitucionalidade dos dispositivos da lei mineira, impedindo a arbitrária e desarrazoada inclusão de pessoas no polo passivo da obrigação tributária, sob pena de inadmissível violação aos primados da legalidade e da capacidade contributiva”.

Para mais informações sobre esse tema, confira a obra de Paulo Coimbra: IPVA: Imposto sobre propriedade de veículos automotores.