Reforma aumenta a responsabilidade tributária solidária. Em entrevista para o portal Legislação & Mercados, nossa sócia Alice Jorge fala sobre as situações em que a responsabilidade solidária será aplicada e abordam o que muda para as empresas.
Confira no recorte abaixo:
Ampliação das situações em que um contribuinte terá de pagar o imposto de terceiros vai requerer mais atenção das empresas
A Reforma Tributária ampliou as situações em que um contribuinte pode ter de pagar tributos no lugar de terceiros. A previsão da responsabilidade tributária solidária está na recém-publicada Lei Complementar nº 214/25 (LC 214/25), a primeira que regulamentou a reforma. A mudança vai demandar esforços de adaptação das empresas e mais atenção na seleção de parceiros comerciais, sob o risco de as empresas terem de pagar os impostos que seus parceiros não pagaram – no caso, os novos tributos criados, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Alice de Abreu Lima Jorge, sócia do Coimbra, Chaves & Batista Advogados, considera que será conveniente e recomendável que as empresas tomem um cuidado adicional nas suas relações comerciais, especialmente em caso de sinal ou indício de conduta inadequada de um fornecedor, cliente ou parceiro – uma vez que será possível aplicar a responsabilidade solidária por condutas que possam ser entendidas como uma contribuição para o descumprimento de obrigações tributárias de terceiros. “Recomenda-se que os particulares mantenham registro de suas operações e das tratativas com terceiros (sejam contrapartes ou parceiros) para demonstrar, se vier a ser necessário, que não houve ação ou omissão de sua parte que tenham contribuído para qualquer irregularidade fiscal.”
Hipóteses de responsabilidade tributária solidária
Além da responsabilidade solidária atribuída às plataformas digitais, outras inúmeras hipóteses estão previstas na redação sancionada pelo Presidente Lula no dia 16/01/2025, que deu origem à LC 214/25 (veja, na entrevista abaixo, a lista de situações que podem dar ensejo a ela).
Ela está presente em várias fases da cadeia econômica, desde a importação de bens e serviços até o transporte e outras operações que envolvem a movimentação de bens e serviços sujeitos ao IBS e à CBS. Serão responsáveis solidários os desenvolvedores ou fornecedores de programas ou aplicativos utilizados para registro de operações com bens ou serviços que contenham funções ou comandos inseridos com a finalidade de descumprir a legislação tributária; aqueles que adquirirem, importarem, receberem, derem entrada ou saída ou manterem em depósito bem ou tomado serviço que não esteja acobertado por documento fiscal idôneo; o transportador, inclusive quando se tratar de empresa de serviço postal ou entrega expressa, nas hipóteses em que o bem transportado estiver desacobertado de documento fiscal idôneo ou quando o transportador efetuar a entrega do bem em local distinto daquele indicado no documento fiscal; o leiloeiro, pelo IBS e pela CBS devidos na operação realizada em leilão. Ela vai afetar também o setor de combustíveis – a responsabilidade solidária chega ao adquirente de combustíveis, desde que o pagamento não tenha sido efetuado por meio de instrumento do split payment.
Possíveis controvérsias jurídicas envolvendo a responsabilidade solidária
“As novas hipóteses de responsabilidade tributária solidária previstas na Lei Complementar nº 214/2025 se valem de expressões e conceitos indeterminados, sujeitos a múltiplas interpretações, o que causa insegurança jurídica e destoa da tradição tributária brasileira, além de contribuir para aumentar a já intensa litigiosidade em matéria tributária no Brasil. Esperamos que os tribunais interpretem a nova legislação sob as lentes dos princípios reitores do direito tributário brasileiro, em especial a legalidade estrita (ou cerrada), que veda interpretações extensivas ou analógicas”, avalia a advogada do Coimbra, Chaves & Batista.
Dentre os pontos que podem gerar controvérsia entre o Fisco e os contribuintes, ela destaca o inciso V do artigo 24 da LC 214/25, que estabelece a possível responsabilização de qualquer pessoa física ou jurídica (ou ainda entidade sem personalidade jurídica) que concorra por atos ou omissões para o descumprimento de obrigações tributárias, por meio da ocultação da ocorrência ou do valor da operação ou mediante abuso de personalidade jurídica. “A definição do que pode ser entendido como uma contribuição para o descumprimento da legislação tributária é questão ainda não estabelecida e que muito provavelmente ensejará divergência entre o Fisco e os particulares.”
Outra discussão que pode ir parar na Justiça é a responsabilização de desenvolvedores ou fornecedores de programas ou aplicativos usados para registro de operações com bens ou serviços que contenham funções ou comandos inseridos com a finalidade de descumprir a legislação tributária (prevista no inciso IV do artigo 24 LC 214/2025): “Quais funções de um aplicativo podem ser entendidas como destinadas a descumprir a legislação tributária? Funcionalidades destinadas a controle gerencial, por exemplo, se enquadrariam nesse conceito, sob o fundamento de que viabilizariam um controle de receitas sem obrigatoriedade de emissão dos respectivos documentos fiscais? Não nos parece razoável uma interpretação alargada desse dispositivo”, afirma a advogada.
– No âmbito do direito tributário, no que consiste a responsabilidade solidária?
A responsabilidade solidária no direito tributário é o instituto que permite que o sujeito ativo da obrigação (Fisco) realize a cobrança do tributo do contribuinte ou de um terceiro cuja obrigação decorra da lei, o que lhe for mais conveniente. Na responsabilidade solidária, o ente público (credor) tem a prerrogativa de exigir o pagamento da dívida de qualquer dos devedores solidários (contribuinte ou terceiro), sem a necessidade de observar uma ordem específica.
O Código Tributário Nacional (CTN) trata dos requisitos para que se possa ter a responsabilidade solidária, a qual pode ser natural (hipótese prevista no artigo 124, I do CTN, cabível nos casos em que há interesse comum de duas ou mais pessoas na situação que traduz o fato gerador da obrigação tributária) ou legal (hipótese prevista no inciso II do CTN, em que a responsabilidade decorre de expressa previsão legal).
A solidariedade natural surge quando duas ou mais pessoas realizam conjuntamente o fato gerador ou possuem um interesse comum nele. O interesse comum do artigo 124, I, do CTN se refere a interesses convergentes e não se aplica a situações em que as partes ocupam polos distintos de uma relação jurídica (como comprador e vendedor, por exemplo).
Por outro lado, a solidariedade legal não depende de participação direta no fato gerador, mas sim de previsão em lei das circunstâncias que atraem a responsabilidade. Contudo, mesmo nos casos de solidariedade legal, parte da doutrina tributária (com a qual concordamos) entende que é preciso haver alguma vinculação do responsável com o fato gerador do tributo. Ele não realiza o fato gerador, mas precisa ter com ele alguma relação que justifique a sua escolha como responsável tributário.
– Quais foram as hipóteses de responsabilidade solidária aprovadas no PLP 68/24 e a quem ela afeta, além das plataformas digitais? Os contribuintes serão responsáveis pelo pagamento do IBS e da CBS de terceiros em alguma ocasião?
A Lei Complementar 214/2025, decorrente do PLP 68/2024, faz referência expressa às hipóteses de responsabilidade solidária previstas no CTN e na legislação civil e, a par disso, prevê ainda a responsabilidade solidária:
- das plataformas digitais;
- daqueles que adquirem, importam, recebem, dão entrada ou saída, mantêm em estoque ou são tomadores de bens ou serviços não acobertados por documento fiscal idôneo;
- dos transportadores, em relação aos bens desacobertados de documento fiscal idôneo;
- o leiloeiro, pelo IBS e CBS devidos na operação realizada em leilão;
- os desenvolvedores ou fornecedores de programas ou aplicativos utilizados para registro de operações com bens ou serviços que contenham funções ou comandos inseridos com a finalidade de descumprir a legislação tributária;
- qualquer pessoa ou entidade despersonalizada que concorra com seus atos ou omissões para o descumprimento de obrigações tributárias por meio de ocultação da ocorrência ou do valor da operação ou por abuso da personalidade jurídica caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial;
- o entreposto aduaneiro, recinto alfandegado ou estabelecimento a ele equiparado, assim como o depositário ou despachantes em relação ao bem destinado para o exterior sem documentação fiscal correspondente, recebido para exportação e não exportado, destinado a pessoa ou entidade despersonalizada diferente daquela que o tiver importado ou arrematado ou importado e entregue sem a autorização das administrações tributárias competentes;
- os rerrefinadores ou coletores autorizados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, pelo pagamento do IBS e da CBS incidentes na aquisição de óleo lubrificante usado ou contaminado.
As normas de responsabilidade tributária previstas na recém-publicada Lei Complementar nº 214/2025 podem atingir uma ampla gama de pessoas, as quais podem vir a ser obrigadas a pagar o IBS e a CBS devidos por terceiros.
Merece especial destaque o inciso V do artigo 24 da nova lei, que estabelece a possível responsabilização de qualquer pessoa física ou jurídica ou ainda entidade sem personalidade jurídica que concorra por atos ou omissões para o descumprimento de obrigações tributárias, por meio da ocultação da ocorrência ou do valor da operação ou mediante abuso de personalidade jurídica. A definição do que pode ser entendido como uma contribuição para o descumprimento da legislação tributária é questão ainda não estabelecida e que muito provavelmente ensejará divergência entre o Fisco e os particulares.
Também tende a ser objeto de controvérsia a hipótese prevista no inciso IV do artigo 24 da Lei Complementar nº 214/2025, que trata da responsabilização de desenvolvedores ou fornecedores de programas ou aplicativos usados para registro de operações com bens ou serviços que contenham funções ou comandos inseridos com a finalidade de descumprir a legislação tributária. Quais funções de um aplicativo podem ser entendidas como destinadas a descumprir a legislação tributária? Funcionalidades destinadas a controle gerencial, por exemplo, se enquadrariam nesse conceito, sob o fundamento de que viabilizariam um controle de receitas sem obrigatoriedade de emissão dos respectivos documentos fiscais? Não nos parece razoável uma interpretação alargada desse dispositivo. Qualquer ferramenta pode ser desvirtuada e utilizada para apoio a práticas de sonegação (até mesmo uma simples planilha do excel pode ser usada para essa finalidade). O possível uso para fins de sonegação não pode ser confundido com a criação de uma ferramenta idealizada para facilitar a sonegação.
– A previsão da responsabilidade tributária irá alterar de alguma forma a operação dos contribuintes? Em caso afirmativo, de que forma e quais aspectos passarão a ser observados?
A possibilidade de imposição de responsabilidade solidária por condutas que possam ser entendidas como uma contribuição para o descumprimento de obrigações tributárias de terceiros torna conveniente e recomendável um cuidado adicional nas relações comerciais, especialmente em caso de sinal ou indício de conduta inadequada de um fornecedor, cliente ou parceiro. Recomenda-se que os particulares mantenham registro de suas operações e das tratativas com terceiros (sejam contrapartes ou parceiros) para demonstrar, se vier a ser necessário, que não houve ação ou omissão de sua parte que tenham contribuído para qualquer irregularidade fiscal.
– Como você avalia o texto aprovado?
As novas hipóteses de responsabilidade tributária solidária previstas na Lei Complementar nº 214/2025 se valem de expressões e conceitos indeterminados, sujeitos a múltiplas interpretações, o que causa insegurança jurídica e destoa da tradição tributária brasileira, além de contribuir para aumentar a já intensa litigiosidade em matéria tributária no Brasil. Esperamos que os tribunais interpretem a nova legislação sob as lentes dos princípios reitores do direito tributário brasileiro, em especial a legalidade estrita (ou cerrada), que veda interpretações extensivas ou analógicas.
Leia na íntegra: Legislação & Mercados