Em entrevista para o portal Legislação & Mercados, nossos sócios Alice Jorge, Francisco Côrtes e Marisa Santos, falam sobre o usufruto sobre ações como instrumento de planejamento sucessório: mecanismo que permite a separação entre a propriedade e os direitos do acionista pode ser interessante para programar a herança.
Confira no recorte abaixo:
As ações preferenciais são um exemplo bem conhecido pelos investidores brasileiros da possível separação entre os direitos políticos e econômicos das ações. No entanto, elas não são a única forma de desvinculação entre direitos e/ou propriedade dos papeis. Recentemente, a doação de ações efetuada pelos fundadores da Natura para seus herdeiros lançou luz sobre outra possibilidade: a instituição de usufruto sobre as ações, mecanismo pelo qual a propriedade dos papeis é de uma pessoa, mas os direitos são usufruídos por outra(s).
“Nessa modalidade, o direito de propriedade é dividido em duas diferentes facetas, sendo que o nu-proprietário (aquele que detém a nua-propriedade) é o titular formal do bem sobre o qual recai o usufruto, enquanto ao usufrutuário (aquele que detém o usufruto) são atribuídos os direitos de gozo, uso e fruição sobre ele. No âmbito das participações societárias, o usufrutuário poderá exercer os direitos econômicos das ações, como o recebimento de dividendos, enquanto o direito de voto poderá depender de acordo entre o usufrutuário e o nu-proprietário, conforme venha a ser regulado no ato de instituição do usufruto”, afirmam Francisco Gruppioni Côrtes Júnior e Marisa Matias dos Santos, sócios do Coimbra, Chaves & Batista Advogados.
A doação de ações com usufruto, no entanto, levanta uma discussão tributária: na doação de ações aos filhos, pode haver a incidência do ITCMD e do IRPF (o Imposto de Renda da Pessoa Física, que incide sobre possível ganho de capital).
Esta última tributação causa controvérsia e deverá ser decidida pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Alice Jorge explica que a doação feita pelos pais aos filhos caracteriza adiantamento de legítima e pode ser feita a valor de mercado ou pelo valor constante na Declaração de Bens e Direitos do doador. “Se a transferência for efetuada a valor de mercado, a legislação determina que a diferença a maior entre o valor constante na declaração e o valor de mercado se sujeita à tributação do IRPF na modalidade de ganho de capital.” Os contribuintes buscam afastar a incidência do IRPF, alegando que a hipótese implicaria bitributação em relação ao ITCMD. Entre as turmas do STF, não há consenso sobre o tema: a Segunda Turma considera que a tributação pelo IRPF sobre a doação é constitucional, mas a Primeira Turma tem decisão no sentido contrário. Há recurso aguardando decisão pelo Plenário do STF.
– Ao se tornar acionista, o investidor geralmente adquire direitos políticos e econômicos das ações. Em que ocasiões é possível desvincular esses dois direitos?
Francisco Gruppioni Côrtes Júnior e Marisa Matias dos Santos: Usualmente todas as ações nascem com direitos políticos (ou seja, essencialmente o direito de o acionista votar nas assembleias) e direitos econômicos (o principal direito econômico é o dividendo), entretanto há mecanismos previstos em nossa legislação que permitem arranjos distintos e, em alguns casos, a desvinculação de tais direitos.
A principal forma de desvinculação entre os direitos políticos e econômicos das ações ocorre por meio da emissão de ações preferenciais. Conforme artigo 17 da Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas), as ações preferenciais podem ser emitidas com ou sem direito a voto, mas devem conferir ao acionista direitos econômicos, como prioridade no recebimento de dividendos ou no reembolso de capital, em caso de liquidação da companhia.
Outra possibilidade de segregação dos direitos políticos e econômicos das ações é mediante a instituição de usufruto sobre as ações. Nessa modalidade, o direito de propriedade é dividido em duas diferentes facetas, sendo que o nu-proprietário (aquele que detém a nua-propriedade) é o titular formal do bem sobre o qual recai o usufruto, enquanto ao usufrutuário (aquele que detém o usufruto) são atribuídos os direitos de gozo, uso e fruição sobre ele.
No âmbito das participações societárias, o usufrutuário poderá exercer os direitos econômicos das ações, como o recebimento de dividendos, enquanto o direito de voto poderá depender de acordo entre o usufrutuário e o nu-proprietário, conforme venha a ser regulado no ato de instituição do usufruto.
– Quando pode ser interessante desvincular os direitos políticos e econômicos de determinada ação?
Francisco Gruppioni Côrtes Júnior e Marisa Matias dos Santos: A desvinculação entre direitos políticos e econômicos das ações pode ser uma ferramenta estratégica relevante para atender a diversos objetivos de estruturação organizacional da companhia e, em alguns casos, de planejamento patrimonial dos seus acionistas. Essa separação permite que as companhias estruturem seu capital de forma mais flexível, adaptando-se às necessidades específicas de cada contexto e objetivo.
Por exemplo, as companhias que pretendam captar recursos de investidores, mas não queiram diluir o controle acionário dos sócios originais, podem emitir ações preferenciais sem direito a voto ou com direito a participação apenas em deliberações específicas. Em sentido oposto, também é possível atribuir às ações preferenciais direitos políticos excepcionais, tais como direito de veto sobre determinadas matérias ou a indicação dos administradores da companhia.
Além disso, a emissão de classes diferenciadas de ações é frequentemente utilizada em planos de incentivo para executivos e funcionários. Nesses casos, as empresas podem conceder a participação nos lucros ou dividendos, sem contudo atribuir direitos políticos a essas participações societárias. Essa prática alinha os interesses dos colaboradores aos resultados financeiros da empresa.
No caso de planejamentos sucessórios e patrimoniais, é possível a realização de doação das ações com reserva de usufruto vitalício, em especial de ascendentes para descendentes, permitindo que o doador (usufrutuário) transfira apenas a nua-propriedade das ações para o donatário (beneficiário), resguardando para si os direitos de uso e fruição da participação societária.
Isso significa que, enquanto o usufrutuário estiver vivo, este poderá deter os direitos econômicos e políticos sobre as ações, conforme venha a ser definido no instrumento que instituir o usufruto. Dessa forma, embora a titularidade das ações seja transferida, garante-se que o controle acionário e a administração da companhia não sejam alterados.
– Na prática, o que acontece quando se doam ações e se mantêm os direitos políticos e econômicos? O doador pode, por exemplo, se desfazer dos papéis? Recebe os dividendos?
Francisco Gruppioni Côrtes Júnior e Marisa Matias dos Santos: Quando ocorre a doação de ações, há transferência da propriedade das ações do doador ao donatário, ou seja, o donatário torna-se o titular das ações. No caso da doação com reserva de usufruto, o doador (usufrutuário) resguarda para si os direitos a elas vinculados, ou seja, embora o nu-proprietário torne-se o titular das ações, os direitos de usar e perceber os frutos desse bem são do usufrutuário.
Dessa forma, o doador (usufrutuário) é quem tem, por exemplo, o direito de receber os lucros e dividendos distribuídos pela companhia.
No entanto, a eventual venda da participação societária depende de acordo prévio entre usufrutuário e nu-proprietário, não podendo ser realizada por ato unilateral do doador, uma vez que extrapola o direito de uso e fruição do bem.
– Recentemente, controladores da Natura transferiram parte de suas ações para os filhos. Do ponto de vista tributário, quais são as implicações desse tipo de doação?
Alice de Abreu Lima Jorge: Na doação de ações aos filhos, pode haver a incidência especialmente de dois tributos: o ITCMD (que incide sobre a transmissão de bens por herança ou doação) e o IRPF (o imposto de renda da pessoa física, a incidir sobre possível ganho de capital, calculado considerando a diferença entre o valor de custo das ações e o seu valor de transmissão quando da doação).
O ITCMD irá incidir sobre o valor de mercado das ações por ocasião de sua doação. Atualmente o imposto sobre heranças e doações tem como limite o percentual de 8%, por força de resolução do Senado Federal, mas muitos Estados têm alíquotas inferiores. É o caso de Minas Gerais, cuja alíquota atual é fixada em 5%. Considerando-se a expectativa de aumento nas alíquotas do ITCMD, o planejamento sucessório, com a antecipação da transmissão de bens aos herdeiros, pode vir a ser interessante sob o ponto de vista tributário.
A incidência do IRPF sobre possível ganho de capital nas doações de ações aos filhos, por sua vez, é objeto de divergência entre a Fazenda e os contribuintes e trata-se de tema que deve vir a ser decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). A doação feita pelos pais aos filhos é hipótese que caracteriza adiantamento de legítima. O ascendente antecipa parte do que caberia a cada um na herança. Atualmente, a legislação tributária fixa que a transferência em doação de bens e direitos em adiantamento de legítima pode ser feita a valor de mercado ou pelo valor constante na Declaração de Bens e Direitos do doador. Se a transferência for efetuada a valor de mercado, a legislação determina que a diferença a maior entre o valor constante na declaração e o valor de mercado se sujeita à tributação do IRPF na modalidade de ganho de capital.
Os contribuintes ajuizaram ações buscando afastar a incidência do IRPF, alegando que a hipótese implicaria bitributação em relação ao ITCMD. A Fazenda Nacional, por sua vez, sustenta que o objeto da discussão não é a possibilidade de se tributar a doação em si, mas sim o acréscimo patrimonial resultante da diferença entre o valor do bem ou direito constante na declaração do doador e o valor atribuído ao bem na transferência ao donatário.
A Segunda Turma do STF tem decisão em que entende pela constitucionalidade da tributação pelo IRPF sobre a doação. Já a Primeira Turma proferiu decisão no sentido da inconstitucionalidade. Há recurso aguardando decisão pelo Plenário do STF e esperamos que o tribunal venha a decidir pela inconstitucionalidade da exigência do IRPF nas hipóteses de doação em adiantamento de legítima. A exigência do IRPF sobre a diferença entre o valor de custo e o valor de mercado de bens transferidos a título de herança ou de doação é uma violação às normas de distribuição de competência previstas na Constituição Federal (CRFB/88) e acaba por afrontar e enfraquecer o nosso federalismo. A competência para tributar essa manifestação de capacidade contributiva em específico (transferência de bens a título gratuito) foi conferida aos Estados e ao Distrito Federal e não à União, não sendo lícito à União invadir a competência dos outros entes federados sob o pretexto de que estaria tributando uma renda que nunca chegou a se realizar em favor do doador ou do falecido, uma vez que os bens foram transferidos de seu patrimônio a título gratuito, sem qualquer ganho em seu favor.
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