Em artigo publicado no portal do Conjur, na última quarta-feira, dia 29, os sócios do CCBA, Onofre Alves Batista Jr., Paulo Coimbra e Pedro Henrique Alves Mineiro discorrem sobre a constitucionalidade da cobrança do ICMS-Difal nas operações interestaduais destinadas a consumidor final contribuinte antes da LC nº 190/2022. Confira abaixo:

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O assunto da moda entre os tributaristas é o ICMS-Difal. Isso não é novidade para ninguém. Contudo, enquanto o foco da discussão está na necessidade de aplicação da regra da noventena e da anterioridade anual, passa ao largo outra discussão de igual ou maior relevância: é constitucional a cobrança do ICMS-Difal nas operações interestaduais destinadas a consumidor final contribuinte antes da LC nº 190/2022?

Vale relembrar que o ICMS-Difal foi criado pela Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988). Antes disso, nas operações interestaduais destinadas a consumidor final (contribuinte ou não), aplicava-se a alíquota interna do Estado de origem para cálculo do ICMS, que era devido integralmente a esse Estado. Após a CRFB/1988, essa lógica apenas se manteve para as operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte do imposto.

Já nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final contribuinte, surgiram duas competências tributárias distintas: ao Estado de origem, a competência para o ICMS calculado com base na alíquota interestadual (definida em Resolução do Senado), e, ao Estado de destino, a competência para o ICMS (nas palavras da Constituição) “correspondente à diferença entre a alíquota interna do Estado destinatário e a alíquota interestadual”.

Nesse contexto, foi editado o Convênio ICM nº 66/1988, para regular provisoriamente o ICMS, conforme autorizado pelo artigo 34, §8º, do ADCT, enquanto não fosse promulgada lei complementar dispondo sobre as normas gerais do imposto. O referido convênio previa, por exemplo, que a base de cálculo do ICMS-Difal seria o valor da operação ou prestação sobre o qual foi cobrado o ICMS pelo Estado de origem, ou seja, autorizava apenas a instituição de “base única simples”(já que incluía apenas o ICMS devido à origem, sem inclusão por dentro da alíquota interna do Estado de destino).

O Convênio ICM nº 66/1988 perdeu eficácia com a promulgação da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), que, ao contrário daquele, foi bastante tímida na regulação do ICMS-Difal. De fato, a LC nº 87/1996 apenas regulou o ICMS-Difal incidente nas prestações de serviço de transporte interestadual, restando-se silente acerca do ICMS-Difal nas operações interestaduais de circulação de mercadorias destinadas a consumidor final contribuinte. Apenas com a LC nº 190/2022 (mais de 25 anos depois), houve a regulação do ICMS-Difal nessas hipóteses!

Posteriormente, no contexto do crescimento substancial do comércio eletrônico, houve a instituição do ICMS-Difal incidente nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte, por meio da Emenda Constitucional nº 87/2015 (haja vista o fracasso da tentativa dos Estados ao celebrarem o Protocolo ICMS nº 21/2011 — declarado inconstitucional pelo STF no julgamento em conjunto do RE 680.089/SE e das ADIs 4.628/DF e 4.713/DF).

Em que pese a criação de uma nova relação jurídica-tributária entre o remetente da mercadoria (sujeito passivo) e o Estado de destino (sujeito ativo), tampouco houve a edição de lei complementar regulando os critérios da regra-matriz de incidência do ICMS-Difal nas operações e prestações destinadas a consumidor final não contribuinte. Nesse ponto, cabe ressaltar o papel da lei complementar, nos termos do artigo 146, I e III, “a”, da CRFB/1988, para dispor sobre conflitos de competência e estabelecer normas gerais acerca da definição dos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos.

Em primeiro lugar, é evidente a existência de conflitos de competência no caso do ICMS e do ICMS-Difal, seja na definição precisa dos Estados (de origem e destino) envolvidos na operação ou prestação de serviços (limites espaciais da regra de competência), seja na repartição do produto da arrecadação, ao definir as bases de cálculo do ICMS (devido à origem) e do ICMS-Difal (limites quantitativos), que não foram definidas precisamente pela Constituição de 1988.

Em segundo lugar, apenas alguns critérios da regra-matriz de incidência tributária do ICMS-Difal são passíveis de extrair do texto constitucional, como é o caso do critério ou aspecto material, relativo à circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte (interestaduais), e o sujeito passivo (remetente, quando o destinatário for não contribuinte, ou destinatário, quando este for contribuinte do imposto), restando a incerteza em relação aos demais.

Dessa forma, resta evidenciada a imprescindibilidade da lei complementar para regulação do ICMS-Difal, tanto nas operações e prestações destinadas a consumidor final contribuinte quanto naquelas destinadas a consumidor final não contribuinte. Contudo, apenas o segundo caso foi apreciado pelo STF no julgamento do Tema 1.093 de Repercussão Geral, em que o Tribunal declarou a inconstitucionalidade das cláusulas 1ª, 2ª, 3ª, 6ª e 9ª do Convênio ICMS nº 93/2015, cujos efeitos da decisão foram modulados para 1º de janeiro de 2022.

De modo similar, embora ainda não enfrentado pelo STF, deveria ser declarada a inconstitucionalidade da cobrança do ICMS-Difal nas operações destinadas a consumidor final contribuinte, na medida que também houve a instituição de uma nova relação jurídico-tributária (pela CRFB/1988), resultando em diversos conflitos de competência, sem que houvesse a definição dos critérios da regra-matriz de incidência em lei complementar.

A edição da Lei Complementar nº 190/2022 apenas reforça a conclusão acima, na medida em que buscou regular a incidência do ICMS-Difal tanto nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte quanto nas operações interestaduais destinadas a consumidor final contribuinte. Em outras palavras, se houve a necessidade de disciplinar esses temas em lei complementar (após o julgamento do Tema 1.093), é porque não havia (para nenhum deles), até então, regulação em lei complementar!

Nesse ponto, a tardia sanção presidencial do PLP 32/2021, que resultou na LC nº 190/2022, somente após a virada do ano, gerou dois problemas evidentes, relacionados à aplicação das regras constitucionais da noventena e da anterioridade anual: 1) nas operações e prestações interestaduais destinadas a consumidor final não contribuinte, a modulação dos efeitos pelo STF foi apenas para 1º de janeiro de 2022, o que significa que, enquanto a LC nº 190/2022 não produzir efeitos, os contribuintes poderão se resguardar da cobrança indevida do ICMS-Difal pelos Estados; e 2) nas operações interestaduais destinadas a consumidor final contribuinte, como ainda não houve apreciação pelo STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade ou em repercussão geral, os contribuintes poderão pleitear a repetição do indébito relativo ao ICMS-Difal cobrado nos últimos cinco anos, bem como o direito ao afastamento da cobrança até a produção de efeitos da LC nº 190/2022.

A esse respeito, o artigo 3º da LC nº 190/2022 não deixa dúvidas: a referida lei somente produzirá efeitos após a observância do disposto no artigo 150, III, “c”, da CRFB/1988 (regra da noventena), que remete expressamente à alínea “b” do mesmo inciso (regra da anterioridade anual): ou seja, em 01/01/2023. Isso, se os Estados instituírem, até lá, o ICMS-DIFAL, em observância à LC nº 190/2022!

É preciso ficar claro que existe a vontade do Fisco, a vontade do legislador e a vontade da lei. A vontade do Fisco, ao que tudo indica, parece ter sido a de apenas tratar de uma partilha de receita entre entes federados. A toda evidência, “aproveitando a carona”, o Fisco inseriu na lei tributária complementar a possibilidade de utilizar a “base dupla”, colocando por dentro o ICMS-Difal do destino (majorando a carga tributária incidente final). A vontade do legislador, em larga medida, parece ter dado amparo aos anseios do Fisco, embora tenha, a contragosto do que desejavam os agentes fiscais, inserido expressamente a noventena. Entretanto, o que interessa efetivamente ao aplicador do direito é a vontade da norma.

Agradando ao Fisco ou não, ocorre efetiva “instituição” de tributo pela norma que cria o ICMS-Difal. Não se trata de mera partilha de recursos arrecadados, o que poderia ter sido feito por uma espécie de “contracorrente” compensatória entre os Estados, deixando o ICMS incidir apenas na origem (que seria bem mais prática para os contribuintes). Não é isso que faz a norma.

Ao contrário, a norma tributária resultante que institui o ICMS-Difal exsurge como uma síntese do mandamento veiculado pela lei complementar com a lei estadual (ordinária) que institui o tributo. A norma tributária, portanto, é essa resultante (LC + LO estadual). Apenas com a LC 190/2022, nos casos em que já havia sido editada a lei ordinária estadual, o ICMS-DIFAL é instituído. Por isso, deve-se observar a noventena e a anterioridade constitucionalmente prevista.

E no que diz respeito ao ICMS-DIFAL devido pelo consumidor final contribuinte? Nesse caso, a norma que institui o tributo ainda não entrou em vigor (deve observar, igualmente, a noventena e a anterioridade). O pagamento até aqui realizado, nessa toada, é indevido e pode ser repetido.

Fonte: www.conjur.com.br