Carf autoriza punições mesmo antes de condenação. Segundo instância máxima do órgão, contribuintes podem perder direito a benefícios fiscais. Em entrevista para o portal Legislação & Mercados, nosso sócio Paulo Coimbra comenta sobre o assunto. Leia no recorte abaixo:

A Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), instância máxima do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), decidiu recentemente que, mesmo sem terem sido condenados por crime contra a ordem tributária, os contribuintes podem ser punidos com a perda do direito a isenções ou benefícios fiscais.

“Atropelando todo o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência inexoráveis a um processo penal e às gravosas consequências dele decorrentes, o fisco poderia fazer um juízo de valor acerca de uma conduta praticada, capitulá-la como um possível crime e revogar o benefício ou incentivo fiscal concedido ao contribuinte”, afirma Paulo Coimbra, sócio do Coimbra e Chaves Advogados.

Para a decisão, o CSRF se baseou numa leitura própria do que estabelece o artigo 59 da Lei 9.069/95, que trata das punições a crimes contra a ordem tributária.

O precedente pode ser aplicado a outros casos. Com isso, mesmo antes de decisão definitiva do Judiciário, contribuintes podem ser punidos sem terem sido condenados por crime contra a ordem tributária.

A seguir, Coimbra detalha aspectos da decisão e suas implicações para os contribuintes.

 

Recentemente, o Carf determinou que contribuintes podem ser punidos por crimes contra a ordem tributária mesmo antes de serem condenados. O que envolve essa decisão?

A Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), órgão colegiado de última instância do Carf, contrariando sua jurisprudência anterior, decidiu, por cinco votos a três, que para a revogação de incentivos fiscais ou benefícios de isenção ou redução tributárias, previstos na legislação tributária, não é necessário o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Seria necessário tão somente que o contribuinte, em tese, pratique um ato ou tome uma conduta que sejam interpretados pela autoridade fiscal como configuradores de um crime.

Trocando em miúdos, isso significa que, atropelando todo o contraditório, a ampla defesa e a presunção de inocência inexoráveis a um processo penal e às gravosas consequências dele decorrentes, o fisco poderia fazer um juízo de valor acerca de uma conduta praticada, capitulá-la como um possível crime e revogar o benefício ou incentivo fiscal concedido ao contribuinte. Isso tudo sem falar que o suposto “crime” poderá não ser posteriormente reconhecido, seja por superveniente extinção do crédito tributário, por meio de uma sentença penal absolutória proferida pelo Judiciário, pelo não oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, ou quiçá mesmo pela autoridade policial solicitar o arquivamento do inquérito por entender não haver indícios materiais mínimos ou não capitulação dos fatos para a continuidade das investigações, havendo a concordância do parquet e do juízo nesse sentido.

Em quais argumentos o Carf se baseou para determinar as punições pré-condenação?

O caso tratou da revogação do direito do contribuinte de aproveitamento de créditos presumidos de imposto sobre produtos industrializados (IPI) nas operações de exportação.

Em sua jurisprudência anterior, o próprio Carf entendia que esse aproveitamento não decorreria de um benefício fiscal, incentivo de redução ou isenção, mas de mero direito creditício próprio da técnica de não cumulatividade inerente ao imposto. Contrariando seu próprio entendimento, nessa recente decisão aduziu o órgão colegiado que, na prática, o crédito presumido de IPI na exportação configuraria um benefício fiscal. Isso porque, sendo escriturado como um crédito em face do fisco, reduziria o valor final a pagar de outros tributos, como PIS/Cofins, que seriam compensados com esse crédito de IPI. Ou até mesmo se equipararia a uma isenção, haja vista que os créditos poderiam se equivaler aos débitos tributários, podendo inclusive superar esse valor — tornando o contribuinte momentaneamente credor do fisco, com a possibilidade de ressarcimento do crédito acumulado ao final do trimestre-calendário.

A Lei 9.069/95 dispõe, em seu artigo 59, que “a prática de atos que configurem crimes (…) acarretarão à pessoa jurídica infratora a perda, no ano-calendário correspondente, dos incentivos e benefícios de redução ou isenção previstos na legislação tributária”. Ora, veja-se que o Carf, além de revisar sua jurisprudência, extrapolou a fórceps a categorização do aproveitamento dos créditos de IPI, entendendo-o — em nossa avaliação, equivocadamente — como um benefício fiscal.

Para além desse raciocínio deveras forçoso, entendeu a CSRF, enfocando na literalidade do dispositivo mencionado, que o legislador, ao dizer “prática de atos que configurem crimes”, não disse “prática de crimes”, ou “condenação por prática de crimes contra a ordem tributária”. Nesse sentido, bastaria o contribuinte praticar um ato ou tomar uma conduta que a autoridade fiscal entendesse como crime (fato típico, ilícito e culpável) para que revogasse o aludido “benefício fiscal”. Haja vista que o legislador, ao vedar a fruição de benefício fiscal a quem tenha praticado ato que configure crime contra a ordem tributária, não exigiu condenação penal e sequer condicionou essa revogação à abertura de processo criminal. Exigiu apenas que a conduta proibida se adeque ao disposto pela legislação penal. Tal entendimento extrapola, e muito, as competências atribuídas à fiscalização. Pela independência das instâncias punitivas (tributária e penal), poderia então o fisco, seguindo essa linha, considerar um ato como configurador de um crime (competência exclusiva do Poder Judiciário, condicionada à legitimidade postulatória exclusiva do Ministério Público) e, então, revogar o benefício.

Existe, na sua opinião, algum aspecto abusivo nessa decisão?

Com a devida licença ao entendimento esposado pela maioria dos julgadores da CSRF no caso, entendemos que a decisão é não somente abusiva como também ilegal, inconstitucional e imoral.

Ilegal pois, erroneamente, categoriza um incentivo creditício, próprio da técnica da não cumulatividade do imposto, como um benefício fiscal, quando a lei não o faz. Além do que, vai em sentido diametralmente oposto à decisão anterior tomada pelo próprio CSRF em caso idêntico, julgado no ano de 2010, que entendeu que o benefício não configuraria nem um incentivo nem um benefício fiscal, e, mesmo que o fosse, seria necessário o desfecho do processo penal para a sua revogação. Nesse sentido, com essa decisão mais recente, a jurisprudência do tribunal não estaria se mantendo estável, íntegra e coerente, conforme disposição expressa prevista no artigo 926 do Código de Processo Civil, Lei 13.105/15.

Além disso, extrapola acintosamente os limites da competência administrativa conferida aos auditores fiscais. Reconhecer a prática de um crime, bem como a imputação de quaisquer consequências de sua prática, não prescinde de uma decisão judicial (princípio da reserva jurisdicional), que somente pode decorrer de iniciativa exclusiva do Ministério Público, na medida em que se tratam de crimes sujeitos à persecução por ação pública.

Inconstitucional, pois viola frontalmente direitos fundamentais dos contribuintes previstos na Constituição, como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa. A decisão do Carf é teratológica nesse sentido, se tratando de um caso clássico de “fraude à Constituição”: apoiando-se na literalidade pedestre de um dispositivo, ou interpretando-o isoladamente de todas as outras normas do ordenamento, o intérprete frauda a Constituição, violando a sua hierarquia e impedindo que os axiomas e princípios desta irradiem seus efeitos por sobre a ordem jurídica.

E imoral, pois a decisão viola a ordem jurídica em sua totalidade, ao quebrar a confiança dos contribuintes nas autoridades, prejudicar a segurança das relações jurídicas e ressuscitar um processo medieval de acusação. Além de que, se valendo de uma nova composição dos integrantes que compõem a CSRF, reverter uma jurisprudência para fazer valer o entendimento do fisco, perfazendo-se um “direito de ocasião”.

Qual o potencial prejuízo da decisão para os contribuintes?

Essa decisão representa um perigoso precedente. Contribuintes de boa-fé que se vejam diante de autuações fiscais — algo, diga-se de passagem, não tão raro quanto se possa imaginar, haja vista a complexidade e a pluralidade de interpretações possíveis da legislação tributária, divergentes da esposada pelo fisco — poderão ver seus benefícios e incentivos fiscais, ou até mesmo incentivos creditícios, serem revogados pelo fisco, por, de forma preconcebida ou preconceituosa, considerar o ato como criminoso.

A par disso, uma posição tão arbitrária e presunçosa das autoridades fiscais, caso levada a cabo, culminaria por recrudescer ainda mais a beligerância superlativa que já macula, lamente-se, as relações entre contribuintes e administração fazendária.

Espera-se que o Judiciário reverta essa decisão.

 

Fonte: Legislação & Mercados