Em artigo publicado no Conjur, os sócios do CCA, Onofre Batista, Paulo Coimbra e Marianne Baker, opinam sobre a velocidade das normas no tratamento tributário dos descontos na folha.

No dia 23/06, foi publicada a Solução de Consulta Cosit nº 96/2021, em resposta a um contribuinte que buscava por esclarecimento a respeito da incidência de contribuições previdenciárias sobre descontos de alimentação, transporte e assistência médica. O entendimento da empresa especializada na prestação de serviços terceirizados de limpeza, manutenção, conservação e de locação de mão de obra era claro: a incidência de contribuições sobre o valor da coparticipação dos empregados corresponderia à tributação dos próprios benefícios, que são isentos, nos termos do artigo 28, §9º, da Lei 8.212/91.

A resposta dada pela Receita Federal segue a lógica anômala já expressa por meio de outras soluções de consulta anteriores sobre o tema (Cosit 04/2019, Cosit 58/2020 e SRRF04/Disit 4.021/2020). O entendimento do fisco federal é de que “(a) tributação recai sobre a remuneração devida ao empregado em retribuição pelos serviços por ele prestados, antes de serem efetuadas as deduções relativas às coparticipações do trabalhador em tais benefícios”.

Conforme exposto na SC Cosit nº 96/2021, uma vez caracterizada a natureza remuneratória da parcela original que retribui o trabalho prestado, é irrelevante para a definição da base de cálculo do tributo a destinação a ser dada a essa parcela paga/devida/creditada ao empregado. Por isso, independentemente do tratamento dado à parcela suportada pela empresa, os valores descontados a título de saúde, alimentação e transporte são parte da remuneração e devem ser oferecidos à tributação, conforme entende a RFB.

Partindo do pressuposto de que o vale-transporte consiste apenas no valor custeado pelo empregador para o deslocamento dos emprega­dos ao trabalho, para a alimentação e para a saúde dos empregados, o representante do Fisco conclui que não haveria que se cogitar a possibilidade de dedução do valor descontado da base de cálculo da contribuição devida pela em­presa.

O equívoco do raciocínio adotado pela Receita Federal é grave e patente. Ainda que o vale-transporte, o auxílio-alimentação e a assistência médica pudessem ser entendidos como remuneração — e, portanto, a princípio aptos a atrair a exação previdenciária —, não se sujeitam às contribuições, pois há norma específica que exclui expressamente a incidência.

Na verdade, o vale-transporte, o auxílio-alimentação e a assistência médica são compostos por duas parcelas: o montante suportado pelo empregador (proventos) e aquele custeado pelo empregado (desconto). Há, inclusive, autorização normativa para esses descontos (artigo 2º, § 1º do Decreto 05/91 e artigo 4º, parágrafo único da Lei 7.418/85).

Nos termos do § 2º do artigo 22 da Lei 8.212/91, “não integram a remuneração” as parcelas de que trata o § 9º do artigo 28. Em outras palavras, proceden­do-se a uma interpretação sistemática dos dispositivos mencionados, pode-se afirmar que a base de cálculo da CPP é composta pelas verbas remuneratórias, não cabendo perquirir acerca da natureza das par­celas de que trata do § 9º do artigo 28, porque estas verbas não são consideradas remuneração em razão de previsão expressa de lei (§ 2º do artigo 22). Ainda que o fossem, foram expressamente excluídas do espectro de incidência da norma tributária.

Trata-se de definição de base de cálculo, que é firmada pelos dispositivos mencionados, fazendo-se uma fixação tipificante do aspecto quantitativo do conse­quente da norma de incidência tributária. Em síntese, a base de cálculo da contribuição previdenciária não se confunde com o conceito de “remuneração” forjado e conceituado pelo Direito do Trabalho, mas a CPP incide por sobre a “remuneração” sub­traída das parcelas (habituais ou não) previstas na própria lei tributária. Isso é óbvio!

Admitir que o artigo 22, I define a base de cálculo e faz nascer o tributo e que, em momento posterior, o artigo 28, § 9º exclui da incidência do tributo as parcelas nele especificadas seria teratológico. Seria o mesmo que admitir a norma do artigo 22, I, como mais veloz do que a norma do artigo 28, § 9º. Na verdade, as duas incidem juntas, coincidem, com a mesma velocidade e, assim, juntas, estabelecem legalmente a base de cálculo da contribuição previdenciária. Como bem afirma Alfredo Augusto Becker (Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 277), todas as normas têm a mesma velocidade, afas­tando o entendimento de que a norma de incidência tributa e a de isenção, poste­riormente, exclui.

Todo o valor do auxílio-alimentação, do vale-transporte e da assistência médica não integram a base de cálculo da CPP nem da CPS por expressa e óbvia determinação legal (artigo 28, § 9º, “c”, “f” e “q” da Lei 8.212/1991). A lei não faz distinção entre a parcela custeada pelo empregador da parcela custeada pelos empregados. Todo o benefício fica fora do espectro de incidência dos tributos, por determinação legal, que assim definiu a base de cálculo.

Em sintonia com os mandamentos constitucionais é que o artigo 28, § 9º da Lei nº 8.212/1991 estabelece parcelas que não integram a base de cálculo do tributo. Para alguns, trata-se de hipótese de não incidência qualificada (isenção legal). Para outros, poder-se-ia dizer que se trata do respeito a uma não-competência de índole constitucional, não pos­suindo a União sequer poder de instituir tributos sobre vale-transporte ou auxílio-alimentação, por exemplo, porque o poder de tributar cons­titucionalmente outorgado se limita à possibilidade de fazer a tributação previdenciária recair por sobre verbas remuneratórias (“folha de salá­rios”).

Nessa toada, pode-se dizer que, nos casos listados no artigo 28, § 9º da Lei nº 8.212/1991, ainda que se admita a competência constitucional, inarredavelmente, a tributação não poderia ocorrer porque se está (para alguns intérpretes) diante de uma não incidência qualificada (isenção) expressamente determinada pela lei. Usando mais uma vez de maior rigor, pode-se afirmar que esses casos tratam de situação de não-incidên­cia simples porque a base de cálculo vem expressamente determinada pela lei, conformando-a aos limites inerentes à competência outorgada pela lex mater, deixando-se de fora as parcelas em comento. O le­gislador deixa claro que essas parcelas “não integram” o salário-de-con­tribuição, seja por se considerar incompetente para tanto, seja por haver reconhecido a natureza não remuneratória das aludidas parcelas, seja porque elas foram excluídas da base de cálculo por razões extrafiscais.

Repise-se que, ao tratar da não incidência de contribuições previ­denciárias sobre as verbas em análise, a Lei nº 8.212/1991, de forma direta, cristalina e óbvia, exclui o auxílio-alimentação, o vale-trans­porte e a assistência médica da base de cálculo da CPP e da CPS, sem fazer nenhuma distinção entre a parcela a cargo da empresa (proventos) e aquela descontada da remuneração de seus empregados (descontos). Revela-se, assim, a incongruência e a incompletude do entendimento adotado pela RFB em face da norma que deveria guiar-lhe a atuação, ao pretender criar tratamento diferenciado quando a lei não o fez.

O que a legislação tributária marca e frisa é que o montante desti­nado à alimentação, transporte e saúde do obreiro não deve ser onerado, para que o Estado não retire, sob a forma de tributos, valores destinados ao atendimento dos direitos fundamentais à alimentação, ao transporte, à saúde e à previdência dos trabalhadores. Ao afastar a incidência de contribuições previden­ciárias por sobre os “descontos”o que a norma tributária claramente faz é incentivar as empresas a arcarem com parcelas que favoreçam ao atendimento de direitos fundamentais do obreiro.

O entendimento equivocado do Fisco causa repulsa, porque, em al­guma medida, decota, sob a forma de tributos, valores que são desti­nados pelos empregadores à satisfação de direitos fundamentais dos empregados. O tributo que quer a Administração Fiscal, em outras pa­lavras, seria pago, de forma repulsiva, com alimento, transporte, saúde e previdência do trabalhador.

Sempre restringindo os entendimentos, em detrimento de direitos sociais fundamentais mais elementares, como saúde, alimentação e transporte, buscando fazer majorar os valores a serem recolhidos aos cofres públicos e proporcionando essa litigiosidade desenfreada que assola o país, recentemente, o fisco exarou a simplista Solução de Consulta Cosit 96/2021. Realmente, parece mesmo que a RFB, direcionada para suas metas de aumentar o bolo fictício de receita que infla a Dívida Ativa, atua de forma prejudicial ao Custo-Brasil, pretendendo induzir o entendimento do Judiciário a uma lógica enviesada em favor da máxima arrecadação.

Todo o “contorcionismo mental” dos agentes do Fisco para dar uma pretensa natureza salarial às parcelas descontadas do empregado es­barra em uma obviedade: os valores atinentes ao vale-transporte, ao auxílio-alimentação e à assistência à saúde estão expressamente fora do campo de inci­dência das contribuições previdenciárias, agradando a RFB ou não. Não importando o que os agentes administrativos entendam, há de se deixar destacado que é a lei que expressamente exclui as verbas da base de cálculo do tributo. E, no Estado de Direito, a lei tributária deve preponderar sobre a vontade do Fisco!

 

Fonte: Conjur

 


Participe do lançamento da obra “Contribuição previdenciária sobre descontos na folha de salários: uma interpretação à luz da ‘eficácia irradiante’ dos direitos fundamentais”, de autoria dos nossos sócios Onofre Alves Batista Junior, e Paulo Roberto Coimbra Silva, hoje, dia 30 de junho, a partir das 17h e saiba mais sobre o assunto.